sábado, 17 de julho de 2010

POR FALAR EM SAUDADES DO SERTÃO...

Saudades do Meu Sertão
Marcos Medeiros
Publicado no Recanto das Letras em 22/02/2009
Código do texto: T1451703


Quem já habitou no sertão
teve chance, igual a mim,
de brincar e comer doce
de boneco de alfinim,
de tomar água do pote
pegar preá no serrote,
tanger porca e bacurim.

Lembro, como sendo agora,
da minha infância querida,
da pescaria no açude,
da arribação na bebida,
quem quiser mudar que mude,
eu peço a Deus que me ajude
que eu me lembre toda vida.

Cheiros e cores, eu guardo
como o som de amolar peixeira,
o rio botando a cheia
que comia a ribanceira,
eu não consigo esquecer
o suave alvorecer
e o prazer da brincadeira.

O pote d’água friinha
só me traz recordação
do caneco de alumínio
que segurava na mão
mesmo sem qualquer enfeite,
usava pra tomar leite
escorado no mourão.

Quem estiver me ouvindo
e achar meu modo estranho
vai continuar achando
e eu sendo o mesmo de antanho,
lá do tempo da quartinha,
da deitada da galinha
e do mugir do rebanho

Tem gente que, hoje em dia
pergunta como é que pode
o cabra sentar a bunda
no couro vindo do bode
mas o que não acredita
é o mesminho que se irrita
e que facilmente explode.

É gente que nunca foi
na casinha eliminar
o que comeu no almoço
ou digeriu do jantar,
com moscas zunindo perto
e um bacurinzinho esperto
acolá fora a fuçar.

Outra figura retida,
nos meus lobos cerebrais,
revela o cavalo pampo,
de tempos memoriais,
num momento esquipando,
em seguida se espojando,
revelando muito mais.

Lembro a tarde enevoada,
que trazia um tom cinzento,
lembro que às cinco da tarde,
vinha o zurrar do jumento,
para marcar hora certa,
como um grito de alerta,
ecoando no firmamento.

Naquela altura, o matuto,
com seu jeito mais banzeiro,
cortava o fumo de rolo,
para um cigarro brejeiro,
e enquanto o tempo passava,
no silêncio meditava,
com feitio beradeiro.

A chuva mal começava,
a meninada partia
pra debaixo das biqueiras,
por onde a água escorria
e, depois na enxurrada,
morria de dar risada,
extravasando alegria.

Em poucos dias se via
o frescor da natureza,
com babugem suscitando
orvalho, pasto e beleza,
com capim novo brotando,
os animais ruminando
e o povo olhando a proeza.

Para acender mais a chama,
lembrei-me do lampião
que, com pouco mais que nada,
livrava da escuridão,
pois quando anoitecia,
no instante da Ave-Maria,
iluminava o salão.

Quando era noite de lua
todo mundo se juntava
pra jogar conversa fora
e ver quem mais se gabava,
tinha estória cabeluda,
que juntava Cristo e Buda,
na debulhada da fava.

Estória de lobisomem
e de mula sem cabeça,
ouvindo quando pequeno,
não há quem disso se esqueça,
mais estórias de Camões,
repletas de gozações,
pra que Bocage apareça.

Cada um contando as suas
estórias de padre e monge,
umas mais apimentadas,
com um tributo a Camonge,
mostrando a cada humor puro,
que uma tocha no escuro
ilumina bem mais longe.

Tinha o grupo do alpendre,
de João, Josefa e Zeca,
tinha o grupo do salão,
disputando na sueca,
era um jogo esticado,
que se fosse apostado,
nêgo perdia a cueca.

Aqui, acolá, uma pinga,
com piaba na fritada,
batata doce cozida,
pra toda rapaziada,
o problema que havia
era, às vezes, dar azia
ou, então, barriga inchada.

Tinha noite que se via
o relâmpago cortando,
as nuvens bem carregadas
iam logo se juntando
e o clarão do relampeio
anunciando, no meio,
o corisco se alastrando.

No outro dia, bem cedo,
todo mundo levantava
para ver o resultado
depois que a chuva passava,
via-se poça e orvalho,
um frescor em cada atalho,
por onde se caminhava.

O agricultor sorria,
a criançada pulava,
todo mundo percebia
que a natureza mudava,
pois de verde se vestia
e, a partir daquele dia,
o plantio começava.

Muita gente se perdia
na plantada pioneira,
pois precisava do santo
que regulava a torneira,
o São José, padroeiro,
no ofício de inverneiro,
virava assunto na feira.

Ah, lembranças do sertão
bem sofrido, é verdade,
mas um torrão da essência
da minha realidade,
onde antes banhei no rio,
de manhãzinha com frio,
sinto o ardor da saudade!