Quem já habitou no sertão
Teve chance igual a mim
De brincar e comer doce
De boneco de alfinim
De tomar água do pote
Pegar preá no serrote
Tanger porca e bacurim
Lembro como sendo agora
Da minha infância querida
Da pescaria no açude
Da arribação na bebida
Quem quiser mudar que mude
Eu peço a Deus que me ajude
Que eu me lembre toda vida
Cheiros e cores, eu guardo
Com o som de amolar peixeira
O rio botando a cheia
Que comia a ribanceira
Eu não consigo esquecer
O suave alvorecer
E o prazer da brincadeira
O pote d’água friinha
Só me traz recordação
Do caneco de alumínio
Que segurava na mão
O mesmo que sem enfeite
Usava pra tomar leite
Escorado no mourão
Quem estiver me ouvindo
E achar meu modo estranho
Vai continuar achando
E eu, o mesmo de antanho,
Lá do tempo da quartinha,
Da deitada da galinha
E do mugir do rebanho
Tem gente que hoje em dia
Pergunta como é que pode
O cabra sentar a bunda
No couro vindo do bode
Mas o que não acredita
È o mesmo que se irrita
E que facilmente explode
É gente que nunca foi
Na casinha eliminar
O que comeu no almoço
Ou digeriu do jantar
Com moscas zunindo perto
E um porquinho esperto
Acolá fora a fuçar
Outra figura retida
Nos meus lobos cerebrais
Revela o cavalo pampo
De tempos memoriais
Num momento esquipando
Em seguida se espojando
Revelando muito mais
Lembro a tarde enevoada
Que trazia um tom cinzento
Lembro que às cinco da tarde
Vinha o zurrar do jumento
Pra marcar a hora certa
Como um grito de alerta
Ecoando no firmamento
Naquela altura, o matuto,
Com seu jeito mais banzeiro,
Cortava o fumo de rolo,
Para um cigarro brejeiro,
E enquanto o tempo passava,
No silêncio meditava
Com feitio beradeiro
A chuva mal começava
A meninada partia
Pra debaixo das biqueiras
Por onde a água escorria
E depois na enxurrada
Morria de dar risada
Extravasando alegria
Em poucos dias se via
O frescor da natureza
Com babugem suscitando
Orvalho, pasto e beleza,
Com capim novo brotando,
Os animais ruminando
E o povo olhando a proeza
Para acender mais a chama
Lembrei-me do lampião
Que com pouco mais que nada
Livrava da escuridão
Pois quando anoitecia
Logo na Ave-Maria
Iluminava o salão
Quando era noite de lua
Todo mundo se juntava
Pra jogar conversa fora
E ver quem mais se gabava
Tinha estória cabeluda
Que juntava Cristo e Buda
Na debulhada da fava
Estória de lobisomem
E de mula sem cabeça
ouvindo quando pequeno
não há quem disso se esqueça
mais estórias de Camões
Repletas de gozações
Pra que Bocage apareça
Cada um contando as suas
Estórias de padre e monge
Umas mais apimentadas
Com um tributo a Camonge
Mostrando a cada humor puro
Que uma tocha no escuro
Ilumina bem mais longe
Tinha o grupo do alpendre,
De João, Josefa e Zeca,
Tinha outro no salão
Disputando na sueca
Era um jogo esticado
Que se fosse apostado
Nêgo perdia a cueca
Aqui, acolá, uma pinga
Com piaba na fritada
Batata doce cozida
Pra toda rapaziada
O problema que havia
Era, às vezes, dar azia
Ou, então, barriga inchada
Tinha noite que se via
O relâmpago cortando
As nuvens bem carregadas
Iam logo se juntando
E o clarão do relampeio
Anunciando no meio
O corisco se alastrando
No outro dia, bem cedo,
Todo mundo levantava
Para ver o resultado
Depois que a chuva passava
Via-se poça e orvalho
Um frescor em cada atalho
Por onde se caminhava
O agricultor sorria
A criançada pulava
Todo mundo percebia
Que a natureza mudava
Pois de verde se vestia
E a partir daquele dia
O plantio começava
Muita gente se perdia
Na plantada pioneira
Pois precisava do santo
Que regulava a torneira
O São José, padroeiro,
No ofício de inverneiro,
Virava assunto na feira
Ah, lembranças do sertão
Bem sofrido, é verdade,
Mas um torrão da essência
Da minha realidade
Onde antes, banhei no rio,
De manhãzinha com frio,
Hoje, ardo de saudade!
Marcos Medeiros
Publicado no Recanto das Letras em 22/02/2009
http://recantodasletras.uol.com.br/cordel/1451703